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Lastimável modulação tributária do STF como estímulo ao Estado inconstitucional

Prática pode incentivar agentes públicos a cobrar tributos sabidamente inconstitucionais

Nos últimos anos, temos assistido a cada dia mais a uma intensificação por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) no uso da denominada modulação de efeitos em matéria tributária e, infelizmente, sempre para limitar a obrigação do Fisco de restituir aos contribuintes os valores pagos a maior ou indevidamente a título de tributos.

Exemplo dessa espécie de decisão foi aquela proferida pelo STF em julgamento encerrado no último dia 29 de abril, onde, ao se apreciar os embargos de declaração do RE 1063187 RG, Tema 962 da repercussão geral, o Supremo decidiu por modular os efeitos da decisão anteriormente tomada e que afastou da incidência do IRPJ e da CSLL o valor correspondente à taxa Selic incluído no indébito tributário a ser recuperado.

Os ministros decidiram que os efeitos do julgado serão para o futuro (ex nunc), pois a decisão só produzirá efeitos a partir de 30 de setembro de 2021, ou seja, da data da publicação da ata de julgamento do mérito, ficando ressalvadas as ações ajuizadas até 17 de setembro de 2021 (data do início do julgamento do mérito) e os fatos geradores ocorridos antes de 30 de setembro de 2021 em relação aos quais não tenha havido o pagamento do IRPJ ou da CSLL a que se refere a tese.

Como sempre tem acontecido, a PGFN não trouxe nos embargos de declaração qualquer argumento jurídico que servisse de base para sua pretensão de obter a modulação de efeitos, alegando apenas a necessidade de manutenção da arrecadação estatal.

Infelizmente, trata-se de mais uma decisão onde o STF decidiu por aplicar a modulação de efeitos com o fim único de preservar a arrecadação tributária, num evidente desvirtuamento do instituto, que foi previsto no artigo 27 da Lei 9.869/99 como a possibilidade de o tribunal decidir que, excepcionalmente, determinada decisão somente produzirá efeitos “para a frente” como uma forma de preservar a segurança jurídica ou um excepcional interesse social, em instituto que foi posteriormente agasalhado com iguais condicionantes no artigo 927, §3º do CPC.

Logo, a rigor, a aplicação da modulação de efeitos depende da presença de razões de segurança jurídica ou, de um excepcional interesse social. Aqui vale lembrar que, de acordo com nossa tradicional doutrina, a segurança jurídica tem relação direta com a estabilidade nas relações e previsibilidade para todos os agentes envolvidos na relação jurídica.

Por isso, evidentemente, ao se manter a validade da cobrança de tributo reconhecidamente inconstitucional, desobrigando o Estado de devolver todo o valor que recebeu a maior no passado, o STF não está agindo para preservar a segurança jurídica, mas, ao contrário, essa atuação se dá em prejuízo da estabilidade e da previsibilidade nas relações, pois a regra geral é que as decisões judiciais que declaram a inconstitucionalidade de determinada norma produzam efeitos “para trás”, razão pela qual a aplicação generalizada desse dispositivo é que gera insegurança em todos os agentes participantes dessas relações jurídicas.

Além disso, ao decidir com base em fundamentos econômicos e para preservar a arrecadação, o STF também não age pautado pelo excepcional interesse social, valendo lembrar que interesse social é aquele que diz respeito à sociedade como um todo. A norma não faz menção ao interesse público, ao interesse estatal e tampouco ao que se tem denominado como “razões do fisco”.

A autorização legal para a aplicação da modulação de efeitos foi concebida tendo como pressuposto a necessidade de uma excepcional preservação dos interesses da sociedade. Não se pode cogitar que seja do interesse da sociedade que esta se veja obrigada a pagar por anos e até décadas tributos exigidos de forma inconstitucional e que, ao final, com o reconhecimento dessa inconstitucionalidade, o Estado se veja desobrigado de devolver o que lhe foi pago indevidamente.

Ao contrário, o que interessa à sociedade é que se coíba a odiosa conduta estatal de cobrar tributos sabidamente inconstitucionais por anos e até por décadas, contando a administração tributária com o efeito da passagem do tempo e, agora, com a possibilidade a cada dia mais forte de que o STF module os efeitos da futura decisão e que somente haja a obrigatoriedade de se devolver parte dos valores indevidamente pagos aos cofres públicos, o que torna a cobrança de tributos inconstitucionais uma atividade muito vantajosa.

Trata-se da validação de um agir imoral por parte do Estado, que cobra o que não é devido e, confrontado com essa conclusão final por parte do Poder Judiciário, é desobrigado de restituir todos os valores recebidos a maior porque está se tornando praxe que haja sempre a modulação dos efeitos das decisões judiciais em matéria tributária.

Entretanto, há a necessidade de uma maior reflexão sobre os efeitos nefastos da adoção generalizada dessa prática não só no que diz respeito à imoralidade de o Estado ser desobrigado de restituir o que cobrou de forma indevida, mas também sob o ponto de vista do verdadeiro estímulo que se cria para a ação dos agentes públicos, que se sentirão a cada dia mais estimulados a cobrar tributos de forma inconstitucional, confiantes de que, ao final de anos e até décadas de discussão judicial, a obrigatoriedade da devolução será parcial e apenas para aqueles que ajuizaram suas ações até a data de corte definida pela Corte para a produção de efeitos pretéritos.

Essa modulação de efeitos que está sendo generalizadamente aplicada em matéria tributária não é saudável para os contribuintes, para o Estado, para os administradores públicos e tampouco para a sociedade.